quarta-feira, 22 de julho de 2015

Redescobrindo paixões

Deise Caroline Krug
Já amanhecia, o sol se espreguiçava entre as folhas das árvores e começava a dominar a escuridão da madrugada. Pessoas começavam a surgir nas ruas. Iam para o trabalho, para a escola ou para o xadrez na praça. E eu... eu permanecia ali, estática, ainda sem dormir. Já completava o terceiro dia. Mais um dia em claro, acompanhando o movimento de todos que por ali passavam. Já sabia que uma moça ruiva saía todas as manhãs para trabalhar na loja de antiguidades do outro lado da rua. Também sabia que um homem já grisalho acordava todos os dias antes do sol nascer para correr. Sabia vários detalhes de todos que passavam por aquela praça e já conhecia até a rotina de alguns.
E a minha rotina? E os meus detalhes, cadê? Nada. Devo ter batido a cabeça, adormecido ou sou esquecida mesmo. Mas afinal, quem eu sou? Passei três dias contemplando a vida de outras pessoas, sem ao menos saber o porquê de estar ali. Nenhuma memória, nenhum pensamento.
De repente, nasce em meio ao barulho de veículos, vozes e pássaros um som diferente e encantador. Segui aquele som, que me levou até uma mansão antiga, com ar de mal-assombrada. Olhei para os lados para ter certeza que não havia ninguém por perto e tentei abrir o portão que, para minha surpresa, estava aberto. Espiei por uma janela. Lá estava uma mulher tocando um piano. Um piano? Sim, um piano! Aquele som, aquele formato, tudo começou a fazer sentido.
Sentei em frente à casa e continuei ouvindo as melodias. A cada nota lembrava-me de algo diferente sobre minha vida. Lembrei que, naquela noite, bebi demais e bati com a cabeça na calçada, enquanto voltava para casa. Devo ter desmaiado e alguém me ajudou, pois acordei em um banco. Lembrei também que sou enfermeira e trabalho em um hospital da cidade. E lembrei da minha paixão: a música. Ah, a música. Me trouxe tantas alegrias, consolou tantas lágrimas e, hoje, me ajudou a lembrar minha identidade.
Espiei por uma janela. Lá estava uma mulher tocando um piano. Um piano? Sim, um piano! Aquele som, aquele formato, tudo começou a fazer sentido.
Voltei para casa. Agora, felizmente, eu sabia onde ficava e como podia chegar. Quando abri a porta, me deparei com ele, aquele piano que, além de instrumento musical, é também meu psicólogo. Passei aquela noite em claro. Não conseguia entender por que me tornei enfermeira. Em que momento eu pensei em cuidar da saúde das pessoas? Até pouco tempo não queria nem ver sangue e até hoje tenho medo de injeção. Minha motivação, minha real paixão é a música, não as seringas.
Parece que a batida na cabeça também deu uns tapas na minha vida. Fiquei confusa entre seguir a rotina do passado e apostar em uma paixão que poderia não dar certo. Passei semanas pensando. Nesse tempo, continuei com o hospital e a música em minha vida. Até pensei em dar um tempo nos dois, mas não tinha jeito. Precisava de dinheiro e de sossego. Já se passava quase um mês quando tomei minha decisão. Me demiti. Comecei a dar aulas particulares de piano, violão e canto e, à noite, cantava em alguns bares com dois amigos meus.
Cair na calçada me trouxe um corte na cabeça e um mundo novo de paixões. Tudo eram flores e todos os sons, melodias.
Não senti, em momento algum, saudade do hospital. Ao contrário, me alegrei por ter tomado a decisão de sair, mesmo sem saber que rumo tomaria a minha vida. Meus ex-colegas acompanhavam minhas apresentações nos bares e pagavam-me uma cerveja após o “expediente”. Estavam orgulhosos de mim e admiravam minha coragem. Segundo eles, era notável meu descontentamento em ver macas e pacientes todos os dias. Agora meus olhos brilhavam, meu sorriso resplandecia e minha voz tocava até os corações mais fechados.

Cair na calçada me trouxe um corte na cabeça e um mundo novo de paixões. Sim, minhas paixões se multiplicavam constantemente. Tudo eram flores e todos os sons, melodias. Dizem que o mundo dá voltas. Numa dessas voltas, ele me mostrou que eu não precisava apenas de um emprego que pagasse minhas contas, mas de uma profissão, algo que me realizasse por completo. Foi aí que comecei a viver minha vida baseada em minha grande paixão: a música.

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