quarta-feira, 22 de julho de 2015

Nuvole Bianche

Larissa Batista Dorneles
Nunca fui um cara propenso ao drama. Na realidade, nem filmes desse gênero eu conseguia aguentar por mais de alguns minutos. Porém, isso foi antes do meu apocalipse particular. Diferente do drama, bebidas com alto teor alcoólico sempre prenderam minha atenção. Aquela era a minha noite, eu estava extasiado. Não ouvi quando ela me mandou parar. Não vi o carro vindo em nossa direção. Só ouvi o som da colisão, o qual sempre escuto antes de cair no sono.
Como uma lembrança fúnebre, uma ilusão necessária, deixei os móveis no mesmo lugar desde que ela foi embora. Não só os móveis. A colcha de retalhos, horrorosa na minha opinião, seguia enfeitando a cama todos os dias, cama essa que insisto em arrumar, mesmo não saindo de casa há meses. O imóvel parece que parou no tempo, esquecido, assim como eu. Nós primeiros dias, escutava o telefone tocar com frequência, não tinha vontade de atender. Agora, parece que até minha mãe esqueceu de mim. Melhor desse jeito.
Como uma lembrança fúnebre, uma ilusão necessária, deixei os móveis no mesmo lugar desde que ela foi embora
Desde o acidente, há três meses, a minha rotina era tão sem graça. Se a culpa não me matasse, com toda a certeza o tédio o faria. Passava o dia todo na cama, comia pouco. À noite, abria a janela da frente e ficava na expectativa que, assim como na estória de Poe, um corvo entrasse por ela e selasse o meu destino com o seu “nunca mais”. Claro, isso nunca aconteceu. Não de verdade.
Há semanas, uma ideia se tornava cada vez mais atraente. Em uma gaveta da cozinha, uma combinação de remédios era muito peculiar. Lembranças dos tempos de depressão. Misturada à garrafa de uísque que guardava com tanto carinho, seria um belo jeito de sair de cena. Tinha as armas e a vontade, mas a coragem parecia faltar. Em uma quinta-feira, dia 18 junho, resolvi colocar meu plano em prática.
Peguei a garrafa, os antidepressivos e uma foto dela. Segui para o meu quarto, nosso quarto, observando cada detalhe da casa até chegar lá. Sem demora, tomei todos os comprimidos de Alprazolam e Clonazepam que estavam nas caixas, seguido de um longo gole de uísque. Deveria servir. Deitei na cama. Em minutos, uma moleza dominava meu corpo, enquanto observava a foto dela. Minha noiva. E então tudo ficou escuro e quieto.
Acordei com o som suave do piano da sala, não o ouvia desde o acidente. Ela havia ganhado da avó, uma grande musicista. A melodia era inconfundível, Nuvole Bianche do italiano Ludovico Einaudi, a preferida dela. Levantei-me em um salto. Corri até sala e constatei que minha mente pregava uma das peças mais cruéis dos últimos meses. Junto ao piano estava minha noiva morta, tocando a música que tanto adorava. Seus traços pareciam tão tristes. O rosto molhado ainda ostentava alguns cortes. O cabelo estava mais curto, na altura dos ombros.
Corri até sala e constatei que minha mente pregava uma das peças mais cruéis dos últimos meses. Junto ao piano estava minha noiva morta, tocando a música que tanto adorava
Gritei seu nome. Ela não se mexeu. Era mais uma prova de que aquilo era uma ilusão. Após terminar a música, ela andou pela casa. Pegava alguns objetos e guardava em uma caixa de papelão. E eu ali sentado no sofá, acho que por horas a fio, observando minha noiva passar da sala para o quarto e demais peças da casa.
Ao terminar, ela olhou em volta, mais lágrimas molhavam seu rosto. Pegou a caixa e se dirigiu a porta, e eu a segui. Era uma tarde chuvosa e o vento soprava forte fora das paredes do meu santuário. Ela abriu a porta e fechou o casaco. Já eu não senti o ar gelado. Ela saiu e quando tentei passar pelo batente, foi como se uma parede imaginária me prendesse. Bati com todas as minhas forças contra ela, mas nada. Eu estava preso.

E foi aí que percebi. Diferente dela, eu não pertencia mais a lugar nenhum. Pelo menos a culpa havia sumido, porém a solidão continuaria por um bom tempo. Minha única opção era esperar a próxima visita dela e revisar minha afirmação sobre o drama. Ao final, nenhum de nós foi embora, mas só ela seguiria em frente.

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