Fernanda Zimmermann
“Nos
vemos no Teatro, querida Anna. Assinado G.”
Ela corria
desenfreadamente pelas ruas escuras. A pouca luminosidade vinda dos postes da
rua não ajudava em sua visão. Mas continuava a correr para encontrar algo que
não sabia se estava lá. A velha casa da família ficava do outro lado da cidade,
e de onde estava não sabia se chegaria a tempo, mesmo que orquestras
demorassem. Os pés doíam em uma sandália prata que dificultava sua locomoção,
mas o pensamento de perder a pessoa amada a fazia continuar a correr.
Aqui - “Só
mais um pouco, só mais um pouco”, recitava sua mente sem parar como uma
sinfonia. A noite não estava fria e mesmo que estivesse o suor em seu corpo não
a deixaria sentir. No céu a lua brilhava cheia como em um filme e, se
existissem, todos os lobisomens estariam se transformando agora. Um filme de
terror. E não era isso que estivera vivendo nos últimos minutos? Um maldito
filme de terror? Para Anna Fletcher, a moça de cabelos escuros e pele clara,
que passava apressada pelas lojas fechadas da Avenida 5, era exatamente isso.
A jovem
bibliotecária havia conseguido trocar de turno com sua colega e passara parte
do dia organizando surpresas e se produzindo para o grande concerto de seu
noivo Gregor Lenz. Os dois se conheceram por acaso em uma matéria comum entre
cursos na época de faculdade na qual foram escolhidos a realizar um trabalho
juntos. A partir disso, começaram a passar o tempo junto, uma grande amizade
surgiu e disso veio o amor. Estavam juntos há um pouco mais que cinco anos e
noivos a dois. Viviam felizes no 4º andar de um grande e belo apartamento no
centro da cidade. A vida perfeita de um jovem casal, até o terror daquela noite
começar.
Cheirava a estofado novo, madeira e um aglomerado de perfumes que, de certo modo, irritava seu nariz.
O
Teatro Athea estava quase lotado quando chegou. Cheirava a estofado novo,
madeira e um aglomerado de perfumes que, de certo modo, irritava seu nariz.
Estava gelado como noites de inverno, mas Anna não ligou. Estava deslumbrante
em seu vestido verde azulado que combinava perfeitamente com os olhos de
Gregor. Ela o viu arrumando os últimos detalhes no palco, sorriu e sentou-se no
lugar marcado com um Srta. Fletcher em letras cursivas e douradas. Um homem com
cerca de 45 anos, num terno elegante como o de todos os outros em sua volta,
sentava-se ao seu lado com um ar despreocupado e um tanto superior. Por algum
motivo, parecia feliz em vê-la.
Quando a
Orquestra LEM começou a tocar suas primeiras notas, todo o público parecia
ansioso por mais. Anna estava radiante, olhando orgulhosa para seu noivo
enquanto ele tocava o piano de cauda preta lindamente no palco, fazendo o
público suspirar de euforia. A música entrava em seus ouvidos de uma forma
maravilhosa fazendo-a fechar os olhos para desfrutar melhor aquele momento. Ela
se sobressaltou quando uma voz masculina interrompeu seu devaneio. “Está
gostando, Senhorita Fletcher?”.
Anna
olhou em direção à voz e um pequeno
brilho prateado chamou sua atenção para o homem sentado ao seu lado que lhe
olhava com um sorriso sombrio. O reflexo vinha de uma pequena pistola
calibre 32 que estava apontada diretamente para seu rosto. O espanto e horror
empalideceu toda sua face deixando-a da cor de um papel. Não conseguia
pronunciar uma única palavra de socorro. A única coisa produzindo som, além da
orquestra, era seu coração pulsando mais forte e sua respiração acelerada.
O reflexo vinha de uma pequena pistola calibre 32 que estava apontada diretamente para seu rosto.
“Sabia
que lhe encontraria aqui, mas você, com toda pressa, não deve ter reparado a
letra no cartão-postal deixado em sua casa”. Anna lembrou-se brevemente de ter
encontrado um cartão em meio às correspondências atrasadas. Um G cursivo
assinado no final, o qual pensou ser de seu amado noivo, mas agora percebia o seu terrível erro. O G referia-se
a Gary, um antigo colega de faculdade que envolveu Gregor em um esquema um
tanto mafioso. O noivo havia lhe contado um pouco da história, mas
garantira-lhe que ela não geraria problemas. Grande engano para os dois.
Sem esperar
respostas o homem com a leve calvície continuou a falar: “Olhe para cima, Anna,
está vendo o homem de luvas com o terno cinza no alto desse salão? Ele irá
acertar um tiro certeiro em seu noivo caso você não faça exatamente o que eu
disser. No porão da velha casa da família Lenz, existe uma caixa com alguns
arquivos que não podem vir à tona. Lá também encontrará um pequeno colar.
Gregor me deve isso pelas atividades realizadas há alguns anos em nosso grupo,
como você deve saber. Levante-se como quem vai ao banheiro, saia do teatro e vá
buscar. Você tem até o final do espetáculo para trazer, nem um minuto a mais,
caso contrário, você já sabe o final. Pelos meus cálculos você tem uma hora. É
uma pena que perca o solo do seu noivo, senhorita”.
Horrorizada,
Anna levanta e faz o que o homem lhe disse. Depois de sair do salão, ela começa
uma corrida até a rua, pega o primeiro táxi que passa por ali. Alguns quilômetros
depois, o congestionamento bloqueou sua passagem e o desespero começou a tomar
conta de si. “Não vai dar tempo, não vai dar tempo”, gritava sua mente. Então por um impulso de sobrevivência, jogou o dinheiro ao
motorista e saiu correndo, batendo os saltos pela rua.
Sem fôlego e
com a boca seca, ela correu e correu e correu, passando de rua em rua com um
desespero crescendo no peito. Correu até chegar à porta de madeira lascada da
antiga casa de seu noivo, agora abandonada. Respirando como se o ar não fosse
suficiente, ela entrou com passos largos, procurando a entrada do porão.
Encontrou a caixa descrita, abriu e encarou os documentos tentando encontrar um
motivo de serem tão valiosos. Deu uma lida rápida descobrindo que os documentos
se referiam a golpes do passado realizados pelo grupo que agora esperava com
uma arma apontada para seu noivo. Pegou a caixa com os papéis e o colar,
agarrou com força e saiu da casa, conferindo a hora no relógio.
Mais uma
vez, saiu desenfreada, dessa vez tirando os sapatos e os segurando nas mãos.
Encontrou um táxi e, por algum motivo, as ruas estavam mais vazias. Apressou o
motorista observando o ponteiro diminuir seu tempo.
Faltava pouco para chegar e seu relógio marcava 15 minutos para o fim. 15
minutos era o que separava a vida de seu amado da morte; 15 minutos era o tempo
que tinha para atravessar as ruas e voltar calmamente para seu assento no
teatro; 15 minutos para correr.
Nada importava, precisava correr
Saltou
do carro e dobrou a esquina que levava às portas
do grande Teatro Athea. Ainda faltavam 10 quarteirões e ela correu enquanto as
poucas pessoas na rua a olhavam desconfiadas. A barra do vestido estava suja, e
a maquiagem no seu rosto já não existia mais, assim como o penteado que caía a
cada passo. Nada importava, precisava correr. Avistou as escadarias do grande
teatro e tentou correr mais rápido, mas suas pernas não obedeciam mais aos
comandos da mente.
Já não tinha
forças. As escadas pareciam sem fim e mesmo com esforço não conseguia subir
mais rápido. “Droga, pra que tantos degraus?”. Viu o fim da escada e uma
esperança cresceu dentro de si. Enquanto chegava ao final ouviu um estouro
dentro do grande salão. Um som de tiro sendo disparado e a multidão soltando
gritos em uma confusão que se formava. “Não, não não, não pode ser, NÃO!”. O
impulso a levou a adentrar pelas portas do salão, olhando confusa para todos os
lados. O homem que lhe destinou a tarefa apareceu misteriosamente ao seu lado,
arrancando-lhe a caixa das mãos com um gentil “Obrigado, Senhorita Fletcher”.
Lágrimas
começaram a se formar no rosto de Anna. Em meio à confusão, ela correu até o
palco procurando pelo noivo, até que alguém a puxou pelo braço. Gregor, com um
rosto assustado. Ele a abraçou e ela caiu no choro tentando explicar o que
tinha acontecido. O tiro era pra ele, mas por sorte o maldito piano que causara
todos os problemas da noite o salvara da morte. O maldito piano que Gregor
desejou tocar por toda a sua vida havia levado o tiro por ele, abrindo um
buraco em sua madeira polida. Em meio a toda a bagunça que se formou no salão,
os dois se abraçaram e Gregor pensou que, talvez, não quisesse mais tocar. Anna
desejava o mesmo: sem mais concertos.
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