Rafael Dill Keske
Reviver
os traumas do passado pode ser uma aventura sem retorno. Quando convidado para
uma expedição ao subsolo de uma capela mortuária no bairro de Coven, na cidade
de Bristol, Inglaterra, o jovem explorador e tradutor de aramaico Marcelo
Navabi não poderia, nem mesmo com todo o seu conhecimento sobre história e
espiritualidade, prever o que poderia acontecer. Nem sabia muito bem do que se
tratava a própria expedição, na verdade. Marcelo recebeu o convite de forma
inesperada, em uma noite qualquer, no centro de Londres, enquanto aproveitava
sua dose diária de drogas e voyeurismo. Uma bela moça se aproximou de sua mesa.
Já eram quase quatro da manhã quando Marcelo percebeu aquela menina loira, com
a pele tão branca quanto um grão de arroz, perguntando sobre alguma passagem
secreta no interior de uma igreja. Sua ideia era levá-la para o hotel
mais próximo, mas a jovem não estava por ali para se divertir. Com a oferta de
uma grande quantia em dinheiro, bem como um apelo aos seus conhecimentos sobre
uma linguagem considerada morta, ele foi induzido a aceitar o serviço.
Em
menos de três horas depois, Marcelo se encontrava na porta da capela onde o seu
corpo e mente seriam testados. Em pouco tempo, a equipe que integrava, composta
por dois guias turísticos e, obviamente, a bela garota que o havia contratado,
adentravam no subsolo da igreja, por uma passagem até então desconhecida,
escondida embaixo do altar. O jovem explorador começou a sentir-se
desconfortável, talvez até mesmo claustrofóbico com a situação. Não teve, de
qualquer forma, uma desculpa para deixar a equipe, uma vez que estava sendo
pago para isso. Ele se via em um corredor de pedra escuro. Mesmo com uma
lanterna, era possível enxergar apenas alguns passos à sua frente, uma vez que,
por algum motivo intrigante, ou talvez muito banal, havia em meio à caverna uma
neblina densa, que não permitia a passagem dos raios de luz.
Seguindo
caminho por entre os corredores do subsolo da capela mortuária, o grupo
constantemente se deparava com passagens que levavam a espaços ainda mais
profundos. Marcelo já havia perdido a conta de quantas vezes teve que descer
por um pequeno buraco no chão. Ninguém tinha ideia do nível que estavam abaixo
do solo. Todos já estavam cansados de caminhar no escuro. Menos a garota, que
permanecia determinada a encontrar o que estava procurando. Nisto, os
exploradores chegaram a uma pequena passagem, onde só era possível passar
rastejando. Próximo à entrada, cravado em uma pedra como uma pintura rupestre,
estavam os dizeres “Balā pōrṭāla
Call sbāgatama”. Rapidamente, o tradutor revelava o significado por trás da
escritura. “Sejam bem vindos à porta do inferno”.
Hesitantes,
a equipe resolveu continuar em frente, afinal, já não havia nenhum sinal de
saída ou caminho alternativo naquele ponto. Rastejando, um por um passou pela
pequena passagem, para encontrar uma nova câmara, ainda mais escura e sombria.
Neste novo local, não era possível enxergar nenhuma parede ou cobertura.
Marcelo sentia apenas o chão sob seus pés quando, em um instante, todas as
lanternas pareceram se apagar, deixando todo o grupo sem noção de espaço ou
direção. Ele se sentia sozinho naquele lugar. Até uma luz no horizonte
despertar sua curiosidade. Na esperança de que fosse alguém do grupo, Marcelo
correu até a luz, deparando-se com um piano antigo. Ele questionava a si mesmo
como um o instrumento teria parado ali, no subsolo de uma pequena igreja.
Ele correu em direção à voz, mesmo sem enxergar um palmo a sua frente. A voz parecia cada vez mais próxima, quando ele finalmente encontrou uma porta.
Ao
se aproximar, Marcelo tentou tocar no piano. Lembrou-se de sua infância, e as
tardes inteiras que passava compondo e tocando o mesmo instrumento na companhia
de seu irmão mais novo, já falecido há quase cinco anos em virtude de um
desastre aéreo. Recordava que, no piano de sua família, havia uma tecla
faltando, mas não deu muita atenção para esse detalhe quando sentou e começou a
tocar o instrumento, já empoeirado e em estado de decomposição. Passando seus
dedos por entre as teclas, percebeu que, em apenas uma delas, não havia som. Na
mesma hora, sua memória trouxe a imagem do mesmo piano de sua infância. Já não
era apenas um móvel dentro de uma caverna. Era exatamente o mesmo instrumento
com o qual passara os melhores anos de sua vida. Neste momento, Marcelo ouviu a
voz de seu irmão, distante, gritando por socorro.
Ele
correu em direção à voz, mesmo sem enxergar um palmo a sua frente. A voz
parecia cada vez mais próxima, quando ele finalmente encontrou uma porta. A
entrada levava à outra sala, desta vez, muito clara, devido a um veículo pegando
fogo em seu interior. Mais uma vez, Marcelo se perguntava como o objeto havia
chegado até ali, ou permanecido em chamas por tanto tempo. Tudo era muito
estranho e quase improvável naquele lugar. Nisto, ele percebeu que o veículo em
questão era o mesmo avião em que seu irmão mais novo havia morrido. Ele sentia
que seu antigo companheiro estava lá dentro, implorando ajuda. Marcelo, então,
sentiu como se tivesse vivido todo o acidente que vitimou seu irmão há cinco
anos. Momento em que ele, por ingenuidade ou por uma simples falta de escolha,
acabou abandonando aquela parte de sua família.
Desde
então, Marcelo não tinha memória do acidente. Para ele, tudo havia passado em
branco. A única lembrança do ocorrido era de ter acordado em um campo de soja,
após uma explosão. Mas desta vez, ele não deixaria seu irmão desassistido. O
jovem correu em direção ao avião, à procura daquele que pedia por sua ajuda. Ao
ver uma mão, e um leve traço do rosto de seu irmão em meio à fumaça negra, ele
tentou puxá-la. No desespero, mal percebia que era ele quem estava sendo
puxado. Em pouco tempo, Marcelo já se via dentro do veículo, mais uma vez
sozinho. Ele estava perdendo o fôlego. Já não conseguia respirar ou manter seus
olhos abertos. Apagou mais uma vez.
Seus
olhos tornaram a abrir, lentamente, mas agora em uma danceteria renomada em
Madrid, na Espanha. Não havia sinal de seu irmão ou qualquer outra pessoa do
grupo que estava com ele naquela caverna. Apenas pessoas dançando a sua volta,
acompanhadas por uma música densa e repetitiva, que começou a dar-lhe dores de
cabeça. O ambiente em que se encontrava, somado à experiência que acabara de
vivenciar, fizeram Marcelo querer, apenas, voltar para sua casa. Na saída da
boate, um carro preto, com vidros escuros, esperava por ele, que
automaticamente entrou e sentou no banco de trás. Na direção, era possível ver
um motorista, com o qual não trocou uma palavra sequer. Na verdade, não
conseguia lembrar da última pessoa com a qual havia conversado naquela ou em
qualquer outra noite.
Marcelo
seguiu sua viagem, solitário. Suas pernas ainda estavam quentes, e ele ainda
sentia o calor das chamas daquele avião que encontrou, ou imaginou ter
encontrado, há poucas horas. Ele não conhecia a cidade, mas também não podia
olhar para fora e admirá-la, para, talvez, esquecer-se do que acabara de
presenciar, pois tudo continuava muito escuro. Não havia uma pessoa sequer na
rua. Nada que pudesse interessar a um jovem viajante. Ele tornou a olhar para
dentro, mais especificamente para suas próprias mãos. Nelas, ainda estava a
tecla que faltava no piano de sua antiga casa. Marcelo fechou os olhos e deixou
uma lágrima escorrer por seu rosto, percebendo que tudo já estava acabado mesmo
antes de começar.
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