Daniele Angnes
Três dias
após a morte de Edard um homem bateu na porta. Mafalda correu para abrir. Era
alto, esguio, vestia um terno preto, cachecol, tinha ombros largos, aparentava
ter pouco mais de 30 anos. Pela fresta da porta do meu quarto conseguia vê-lo.
A cada passo que dava, fazia ranger o piso de madeira velha, olhou o cômodo,
por um momento achei que tivesse me visto. Senti um arrepio subir pela espinha.
Os olhos verdes, profundos, avaliaram a casa sem mobília. Apenas a lareira, com
fogo quase apagado, e um piano velho ocupavam a sala. Nunca entendi por que
Edard guardava aquilo, nunca soube tocar e há anos não funcionava.
-
Senhora Villeclaire!
Mafalda
chamou. Pobre Mafalda! Só continuava ali por consideração, pois há meses não
recebia pelo seu trabalho. Desci as escadas e pude ver que ele trazia um
documento em suas mãos. Um arrepio gelado passou por mim. Com ar formal,
estendeu a mão para me cumprimentar. Com um leve sorriso no canto da boca,
beijou o dorso da minha. A barba, com alguns fios grisalhos, fez cócegas.
Os olhos verdes, profundos, avaliaram a casa sem mobília. Apenas a lareira, com fogo quase apagado, e um piano velho ocupavam a sala.
- Bom dia,
Senhora! Eu sou Robert Huisman. Meus sentimentos pela perda do seu esposo.
Apenas ouvi o que ele falava. – Acredito que a Senhora já imagine o que venho
fazer aqui.
Edard tinha
o péssimo hábito de apostar. Várias vezes voltava tarde, machucado e no outro
dia alguém vinha até nossa casa cobrar a dívida. Até o dia que não voltou mais.
Mal tive condições de arcar com as despesas do
funeral.
-
Bom. Ele estendeu o documento para mim. - Na noite em que seu esposo faleceu,
ele deixou este documento como garantia na mesa de apostas. Acredito que se
trate de algo familiar, gostaria que a Senhora lesse.
Peguei
aquele papel, abri o selo, desenrolei e comecei a ler. Havia me esquecido de
como a letra de Edard era terrível. Com dificuldade fui decifrando o que estava
escrito.
Desde
que fechou a fábrica de tecidos, uma das mais bem-conceituadas da cidade, Edard
passava as noites em clubes de aposta. Muitas vezes tivemos que vender móveis e
propriedades para arcar com as dívidas. A única coisa que Edard insistia em
manter naquela casa era aquele piano velho. As teclas já estavam amareladas, só
o pó se acumulava sobre ele. “É a única lembrança de meu pai”, dizia Edard.
Senti o vento frio entrar pelas frestas da casa. A pequena chama da lareira se
apagou e Mafalda correu para pegar mais lenha e acende-la novamente. Voltei
a me concentrar na leitura.
-
Infeliz! Desgraçado!
Pude
perceber o olhar de espanto daquele homem. Nunca o havia visto pela cidade.
Será que era novo? Mesmo sendo, dificilmente conheceria. Quase não saía de
casa.
- Está tudo
bem, Senhora Villeclaire?
Entreguei o
documento a ele. Uma expressão que mistura desaprovação e excitação tomaram seu
rosto. Senti novamente um arrepio subir pela espinha. Em sua última aposta
Edard havia dado a casa com tudo que havia dentro, incluindo sua “amada” esposa
e seu piano velho, como garantia. Sempre soube que Edard era irresponsável,
inconsequente, mas chegar a este ponto. Não consegui responder nada àquele
homem. Robert se despediu, mais uma vez com um beijo no dorso da minha mão.
Abri a porta, ainda sem saber o que falar. A neve se acumulava na escada, o
frio era intenso. Fechei a porta e fui até o piano. Apertei em uma tecla, nada.
Tentei outra, nada. Mais uma, ao menos uma irá funcionar. Um tilintar saiu
dela. Apertei novamente e o mesmo som saiu dela. Não era o som de uma nota. Era
como se alguma coisa estivesse presa aquela corda. Nenhuma das outras teclas
funcionou, apenas aquela. Cada vez que tocava aquela tecla o som ecoava pela
casa.
Entendi por que Edard nunca quis se desfazer daquela coisa velha.
Chamei
Mafalda, que me ajudou a abrir a cauda do piano. Entendi por que Edard nunca
quis se desfazer daquela coisa velha. Assim ele até parecia bonito. Edard
havia guardado naquele piano as joias que pensei que há muito tinha se
desfeito. Todas as joias da família. De certa forma sempre soube que as apostas
seriam seu fim, mas não seria o meu. Me despedi de Mafalda e peguei o primeiro
trem para o interior. Finalmente poderia ter a vida que escolhesse.
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