quarta-feira, 22 de julho de 2015

O marquês de Villeclaire

Daniele Angnes
Três dias após a morte de Edard um homem bateu na porta. Mafalda correu para abrir. Era alto, esguio, vestia um terno preto, cachecol, tinha ombros largos, aparentava ter pouco mais de 30 anos. Pela fresta da porta do meu quarto conseguia vê-lo. A cada passo que dava, fazia ranger o piso de madeira velha, olhou o cômodo, por um momento achei que tivesse me visto. Senti um arrepio subir pela espinha. Os olhos verdes, profundos, avaliaram a casa sem mobília. Apenas a lareira, com fogo quase apagado, e um piano velho ocupavam a sala. Nunca entendi por que Edard guardava aquilo, nunca soube tocar e há anos não funcionava.

- Senhora Villeclaire!

Mafalda chamou. Pobre Mafalda! Só continuava ali por consideração, pois há meses não recebia pelo seu trabalho. Desci as escadas e pude ver que ele trazia um documento em suas mãos. Um arrepio gelado passou por mim. Com ar formal, estendeu a mão para me cumprimentar. Com um leve sorriso no canto da boca, beijou o dorso da minha. A barba, com alguns fios grisalhos, fez cócegas.
Os olhos verdes, profundos, avaliaram a casa sem mobília. Apenas a lareira, com fogo quase apagado, e um piano velho ocupavam a sala.

- Bom dia, Senhora! Eu sou Robert Huisman. Meus sentimentos pela perda do seu esposo. Apenas ouvi o que ele falava. – Acredito que a Senhora já imagine o que venho fazer aqui.

Edard tinha o péssimo hábito de apostar. Várias vezes voltava tarde, machucado e no outro dia alguém vinha até nossa casa cobrar a dívida. Até o dia que não voltou mais. Mal tive condições de arcar com as despesas do funeral. 

- Bom. Ele estendeu o documento para mim. - Na noite em que seu esposo faleceu, ele deixou este documento como garantia na mesa de apostas. Acredito que se trate de algo familiar, gostaria que a Senhora lesse.
Peguei aquele papel, abri o selo, desenrolei e comecei a ler. Havia me esquecido de como a letra de Edard era terrível. Com dificuldade fui decifrando o que estava escrito. 

Desde que fechou a fábrica de tecidos, uma das mais bem-conceituadas da cidade, Edard passava as noites em clubes de aposta. Muitas vezes tivemos que vender móveis e propriedades para arcar com as dívidas. A única coisa que Edard insistia em manter naquela casa era aquele piano velho. As teclas já estavam amareladas, só o pó se acumulava sobre ele. “É a única lembrança de meu pai”, dizia Edard. Senti o vento frio entrar pelas frestas da casa. A pequena chama da lareira se apagou e Mafalda correu para pegar mais lenha e acende-la novamente. Voltei a me concentrar na leitura. 

- Infeliz! Desgraçado! 

Pude perceber o olhar de espanto daquele homem. Nunca o havia visto pela cidade. Será que era novo? Mesmo sendo, dificilmente conheceria. Quase não saía de casa. 

- Está tudo bem, Senhora Villeclaire?

Entreguei o documento a ele. Uma expressão que mistura desaprovação e excitação tomaram seu rosto. Senti novamente um arrepio subir pela espinha. Em sua última aposta Edard havia dado a casa com tudo que havia dentro, incluindo sua “amada” esposa e seu piano velho, como garantia. Sempre soube que Edard era irresponsável, inconsequente, mas chegar a este ponto. Não consegui responder nada àquele homem. Robert se despediu, mais uma vez com um beijo no dorso da minha mão. Abri a porta, ainda sem saber o que falar. A neve se acumulava na escada, o frio era intenso. Fechei a porta e fui até o piano. Apertei em uma tecla, nada. Tentei outra, nada. Mais uma, ao menos uma irá funcionar. Um tilintar saiu dela. Apertei novamente e o mesmo som saiu dela. Não era o som de uma nota. Era como se alguma coisa estivesse presa aquela corda. Nenhuma das outras teclas funcionou, apenas aquela. Cada vez que tocava aquela tecla o som ecoava pela casa.
Entendi por que Edard nunca quis se desfazer daquela coisa velha.

Chamei Mafalda, que me ajudou a abrir a cauda do piano. Entendi por que Edard nunca quis se desfazer daquela coisa velha.  Assim ele até parecia bonito. Edard havia guardado naquele piano as joias que pensei que há muito tinha se desfeito. Todas as joias da família. De certa forma sempre soube que as apostas seriam seu fim, mas não seria o meu. Me despedi de Mafalda e peguei o primeiro trem para o interior. Finalmente poderia ter a vida que escolhesse. 


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