quarta-feira, 22 de julho de 2015

O amor supera tudo

Kelvin Rodrigo Carvalho
“Nada detém a inexorável marcha do tempo." Ouvi essa frase quando tinha 12 anos, nunca mais esqueci. Contrariando alguns filósofos, que recomendam que se viva o agora, hoje quero lembrar o passado, até porque, aos 69 anos, a nostalgia é algo natural.
Nasci no pós-guerra, naquela explosão de nascimentos na qual os soldados tiveram participação direta. Minha mãe se apaixonou por um deles, pracinha da Força Expedicionária Brasileira. Foi ele quem me disse a frase acima quando já estava se despedindo desse mundo. Meu pai, apesar da pouca convivência, me ensinou muito, até hoje sigo seus exemplos. Um deles é ser colorado, não que seja propriamente um exemplo, mas o que essa escolha me trouxe é algo que quero compartilhar com vocês.
Era 1975, eu estava embriagado e extasiado comemorando o gol do Don Elias Figueroa. No rádio ouvia o Haroldo de Souza gritando: Colorado! O grande campeão do Brasil! Na euforia, resolvi correr pela Andradas enrolado numa bandeira vermelha. Acabei tropeçando e beijando um muro. Fui recuperando a consciência ao som de uma voz muito doce, de nuances bem definidas, diria que se anjos tivessem voz seria algo muito semelhante àquilo. Ainda zonzo, pude reparar no brilho do seu rosto. A pele iluminada por um raio de sol que se despedia no horizonte, hoje até penso que devia ser o mesmo do “gol iluminado”. Ela era linda. Levei alguns minutos até que pudesse me recompor e finalmente balbuciar um obrigado. A resposta que veio após o meu agradecimento foi um sorriso. Me apaixonei. Entretanto, antes que pudesse perguntar seu nome duas amigas pegaram-na pelo braço e entraram em um carro, pareciam atrasadas para algo.
Era 1975, eu estava embriagado e extasiado comemorando o gol do Don Elias Figueroa.
A vida seguiu, o tempo passou e quatro anos mais tarde lá estava eu no Beira-Rio. Dessa vez, diferente de 75 e 76, quis ver ao vivo a final do campeonato. Foi incrível! Saí do estádio e fui para um restaurante comemorar com os amigos, em nada lembrava o maluco de alguns anos antes. Escolhemos uma mesa no canto, tinha uma parede de vidro muito bonita, dava para ver todo o movimento da rua, toda a vida que por ali passava. Entre uma e outra taça de vinho fomos lembrando daquele fantástico time dos anos 70 que ganhou tudo. Em determinado ponto da conversa o assunto foi contar onde havíamos comemorados os feitos relevantes de anos anteriores. Naturalmente lembrei da minha bela. Antes que eu pudesse terminar a minha história um som muito agradável ganhou os ares daquele local. Tamanha era a pureza que ficamos em silêncio, ninguém ousou interromper. Levantei-me e fui em direção à origem da melodia que se escondia atrás de uma coluna. Quando finalmente consegui enxergar do que se tratava, quase caí. Era ela, por Deus, era ela.
O destino tratou de nos aproximar mais uma vez e em circunstâncias tão parecidas. Eu estava às suas costas, ela não tinha como me ver, mas eu, em compensação, podia observar cada detalhe de seu corpo. Seus dedos eram ágeis, percorriam as teclas de um imponente piano que parecia sorrir ao ser acariciado por aquelas mãos. Assim que a música terminou não consegui conter a vontade. Me aproximei e me apresentei, depois de alguns segundos, que mais pareceram anos, ela reconheceu-me, levantou, me abraçou e me surpreendeu com um beijo. Inesquecível. Para minha felicidade ela também guardara a minha imagem e o sentimento de amor à primeira vista. Algo muito forte havia nos ligado naquela tarde de dezembro de 75 e não foi o muro, pelo contrário, foi algo que não serviu de barreira e sim de ligação.

Minha mulher era e é uma grande pianista, por inúmeras vezes tocou em bares e locais que eu frequentei, mas foi naquela noite de 79, antes que a década acabasse, que fomos nos reencontrar. Casamos, tivemos duas filhas, lindas, e agora estamos a envelhecer juntos. Às vezes me pego pensando na frase de meu pai, que citei a vocês lá no início, e tenho uma enorme vontade de voltar no tempo só para dizer a ele: pai, há sim algo que detém o tempo, o amor. Esse é eterno!

Um lugar para se reencontrar

Robson Almeida Girardon
Carla e Henrique eram dois apaixonados. Daqueles que andam com a foto um do outro na carteira e fazem juras de amor em público. Poucas vezes eram vistos separados. Se ele ia visitar os amigos, ela estava junto. Se ela fosse escolher uma blusa nova, lá estava ele pra ajudar na escolha.
Eles compartilhavam das mesmas coisas, comidas, ambientes e companhias. Até mesmo na paixão por piano combinavam. Eram frequentadores fiéis de exposições e feiras sobre música. Carla e Henrique trabalharam por dois anos e compraram juntos um piano feito sob encomenda. Era um modelo vertical único, com detalhes pensados especialmente para uso do casal.
No inverno, o programa favorito era ficar em casa ensaiando duetos para o Natal. Também era a época ideal para ouvir as coletâneas compradas na última viagem que fizeram a Montevidéu. Visitavam o Uruguai pelo menos uma vez ao ano, pois foi lá que um dia eles se conheceram.
Ele levou fé nos olhos azuis da moça e correspondeu.
Na época, ele tinha 18 anos e fazia sua primeira viagem internacional. Ela com 21 anos já era pianista profissional e viajava ao país vizinho com mais frequência. Era uma noite fria e a sessão musical estava completamente cheia. Antes mesmo de começar a apresentação, Carla já botou o olho em Henrique. Ele levou fé nos olhos azuis da moça e correspondeu. Em seguida tiveram uma longa conversa, onde pareciam amigos de longa data. Após os primeiros diálogos, sobrevieram sorrisos e abraços. O restante você imagina.
Já se foram alguns anos e, como acontece com a maioria das pessoas, não perceberam o tempo passar. Por qualquer inconstância da vida, se separaram. Pela primeira vez, depois de muito tempo dividindo a mesma rotina, cada um vai pro seu canto. Fica claro para ambos que é preciso reaprender tudo de novo. Atos simples do cotidiano agora são vividos de forma diferente. E a paixão pelo piano? Essa parece que se encerrou junto com o relacionamento. Daí em diante, é preciso que cada um reaprenda a cuidar de si próprio. Eles seguem em frente, cada um do seu jeito, por caminhos diferentes.
Aquele piano que compraram e mostravam a todos na sala de estar, já é parte do passado. Para Carla e Henrique, o piano estava relacionado a tudo que viveram juntos. Decidiram doar para uma igreja. Lá estará para sempre materializando os anos dourados que tiveram. Agora, eles precisam viver o presente, construir o futuro, encontrar novos caminhos, novos lugares, novas pessoas e hábitos diferentes de ser feliz.
Talvez por isso hoje em dia tanta gente queira refazer o que já foi feito.
Não é fácil pra ninguém recomeçar. A arte de deixar as mágoas de lado, sacudir a poeira e seguir em frente é algo que não se aprende em cursinho. “Somos eternos prisioneiros do tempo”. Talvez por isso hoje em dia tanta gente queira refazer o que já foi feito. Retomar uma relação antiga, por exemplo, é algo que assusta. Os tempos são outros. As coisas mudam e as pessoas também.

Carla e Henrique guardam na memória tudo o que se passou. Agora seguem para uma nova etapa de suas vidas. Dificilmente viverão novas histórias juntos. Mas ainda estão aqui. Em breve encontraram outro hobby, um novo instrumento musical para ocupar o tempo e uma outra paixão. E se a saudade insistir em procurar pelos dois, eles sabem exatamente “onde se reencontrar”.

O marquês de Villeclaire

Daniele Angnes
Três dias após a morte de Edard um homem bateu na porta. Mafalda correu para abrir. Era alto, esguio, vestia um terno preto, cachecol, tinha ombros largos, aparentava ter pouco mais de 30 anos. Pela fresta da porta do meu quarto conseguia vê-lo. A cada passo que dava, fazia ranger o piso de madeira velha, olhou o cômodo, por um momento achei que tivesse me visto. Senti um arrepio subir pela espinha. Os olhos verdes, profundos, avaliaram a casa sem mobília. Apenas a lareira, com fogo quase apagado, e um piano velho ocupavam a sala. Nunca entendi por que Edard guardava aquilo, nunca soube tocar e há anos não funcionava.

- Senhora Villeclaire!

Mafalda chamou. Pobre Mafalda! Só continuava ali por consideração, pois há meses não recebia pelo seu trabalho. Desci as escadas e pude ver que ele trazia um documento em suas mãos. Um arrepio gelado passou por mim. Com ar formal, estendeu a mão para me cumprimentar. Com um leve sorriso no canto da boca, beijou o dorso da minha. A barba, com alguns fios grisalhos, fez cócegas.
Os olhos verdes, profundos, avaliaram a casa sem mobília. Apenas a lareira, com fogo quase apagado, e um piano velho ocupavam a sala.

- Bom dia, Senhora! Eu sou Robert Huisman. Meus sentimentos pela perda do seu esposo. Apenas ouvi o que ele falava. – Acredito que a Senhora já imagine o que venho fazer aqui.

Edard tinha o péssimo hábito de apostar. Várias vezes voltava tarde, machucado e no outro dia alguém vinha até nossa casa cobrar a dívida. Até o dia que não voltou mais. Mal tive condições de arcar com as despesas do funeral. 

- Bom. Ele estendeu o documento para mim. - Na noite em que seu esposo faleceu, ele deixou este documento como garantia na mesa de apostas. Acredito que se trate de algo familiar, gostaria que a Senhora lesse.
Peguei aquele papel, abri o selo, desenrolei e comecei a ler. Havia me esquecido de como a letra de Edard era terrível. Com dificuldade fui decifrando o que estava escrito. 

Desde que fechou a fábrica de tecidos, uma das mais bem-conceituadas da cidade, Edard passava as noites em clubes de aposta. Muitas vezes tivemos que vender móveis e propriedades para arcar com as dívidas. A única coisa que Edard insistia em manter naquela casa era aquele piano velho. As teclas já estavam amareladas, só o pó se acumulava sobre ele. “É a única lembrança de meu pai”, dizia Edard. Senti o vento frio entrar pelas frestas da casa. A pequena chama da lareira se apagou e Mafalda correu para pegar mais lenha e acende-la novamente. Voltei a me concentrar na leitura. 

- Infeliz! Desgraçado! 

Pude perceber o olhar de espanto daquele homem. Nunca o havia visto pela cidade. Será que era novo? Mesmo sendo, dificilmente conheceria. Quase não saía de casa. 

- Está tudo bem, Senhora Villeclaire?

Entreguei o documento a ele. Uma expressão que mistura desaprovação e excitação tomaram seu rosto. Senti novamente um arrepio subir pela espinha. Em sua última aposta Edard havia dado a casa com tudo que havia dentro, incluindo sua “amada” esposa e seu piano velho, como garantia. Sempre soube que Edard era irresponsável, inconsequente, mas chegar a este ponto. Não consegui responder nada àquele homem. Robert se despediu, mais uma vez com um beijo no dorso da minha mão. Abri a porta, ainda sem saber o que falar. A neve se acumulava na escada, o frio era intenso. Fechei a porta e fui até o piano. Apertei em uma tecla, nada. Tentei outra, nada. Mais uma, ao menos uma irá funcionar. Um tilintar saiu dela. Apertei novamente e o mesmo som saiu dela. Não era o som de uma nota. Era como se alguma coisa estivesse presa aquela corda. Nenhuma das outras teclas funcionou, apenas aquela. Cada vez que tocava aquela tecla o som ecoava pela casa.
Entendi por que Edard nunca quis se desfazer daquela coisa velha.

Chamei Mafalda, que me ajudou a abrir a cauda do piano. Entendi por que Edard nunca quis se desfazer daquela coisa velha.  Assim ele até parecia bonito. Edard havia guardado naquele piano as joias que pensei que há muito tinha se desfeito. Todas as joias da família. De certa forma sempre soube que as apostas seriam seu fim, mas não seria o meu. Me despedi de Mafalda e peguei o primeiro trem para o interior. Finalmente poderia ter a vida que escolhesse. 


Sofia

Raquel Pedroso Souza

A menina-mulher que sempre quis ser

I.            Rebeldia
Uma mulher com rosto de menina, com seus olhos verdes, chama atenção de qualquer um que a veja. Sem aparentar quem ela realmente era, sempre se mostra ser uma bela surpresa. Com cílios enormes, o delineador contornando os olhos. O cabelo solto, fazendo aquele estilo desarrumado. Uma calça jeans e uma camiseta branca estampada com uma banda qualquer. Ela não era uma mulher qualquer, não era qualquer camiseta de banda de rock, não era qualquer jeans. E sim, a rebeldia que ela respirava.
Rebeldia sem padrões. Sempre sendo ao contrário de tudo. Sendo uma transgressão. Transgredindo as leis. Sem limites. Entre drogas, com um cigarro na mão, filosofa sobre a revolução. Tatuagens à mostra, um crucifixo pendurado no peito. Inocência e transgressão no mesmo corpo. Crescida entre amor e ódio. Amada por uns e abandonada por outros.
Eis que de repente seus olhos brilham...

II.            Revolução
Inicia a sua revolução, deixando de filosofar. Sendo amada por todos, ela incita a rebeldia. Luta contra os valores de uma sociedade corrompida. Se impõe contra os que lhe impõe a lei. Quebra todas as regras. Surge ela imponente em meio à multidão para liderar a sua própria revolução. Bradando palavras de ordem, Sofia é imponente aos demais. Crê que a sua ideologia é a mais importante e convida aos demais para a defenderem ao seu lado.

III.            Liberdade
Deusa da liberdade.
Liberdade que não é liberdade.
Controlada, vigiada, perseguida por todos.
Sobrevivendo a tudo.

IV.            Contra a conspiração
Don’t call me by name!
Don’t call me!
Ela estava lá, sentada, ferrada, acabada tentando entender. Que porcaria de conspiração era aquela? Quem foi que armou aquilo? Desde quando ela foi condescendente? Traída pelos seus. Espera a revolução acabar.
Ira e revolta andavam juntos naquele pequeno e louco pensamento. Grosseira e hostil, será até eles caírem. Esqueceram quem ela sempre foi. Sentimentos traídos, ideias roubadas. Mas o caráter sem ser corrompido. Eles realmente não conheciam a sua anarquia. Não sabiam o quão rude ela pode ser. Quão má pode ser. Quão vingativa pode ser.
“Arrependei-vos enquanto há tempo”
Porque a sua ira se revoltou. Finalmente a sua rebeldia voltou-se ao princípio.
Todos cairão.
Call me by name
Call me
Call me by the name of death
Call me by the name of Sofia 
Perdida e sem chão, ela olha o horizonte e decide se levantar novamente, assumir tudo que sempre foi dela.

V.            Decisão
Ser ou não ser? Eis a questão.
Vencer ou perder? Qual lado?
Certo ou errado? Quem seguir?
Rebeldia ou submissão? Qual a sua decisão?
Motivada a não baixar a cabeça para pessoas que pensam ser superiores.  Ergue-se e retoma a sua revolução. Seguida por uma multidão, Sofia se vê maior de antes de ter caído. Seguidores bradam a sua ideologia pelas ruas.

VI.            A sua ideologia
Puseram a sua ideologia à prova, como se ela fosse uma qualquer.
Rebelde, sim! Insolente, sim, mas não no seu real sentido.
Soberana sobre os outros, a inteligência é o seu maior trunfo.
Não há força que a vença. Não há razão que não seja a sua.
A dona da verdade, sempre estando com a razão.
A sua ideologia, a sua rebeldia. Compararam-na com reles miseráveis, que com força e violência, se dizem rebeldes. Atacam as pessoas fisicamente, meros marginais. Nunca fizeste apologia à violência, jamais dissera que a força bruta prevalecia. Quanta ignorância compará-la. Insultando a sua inteligência. Renova os seus conceitos e afasta os traidores. Pessoas que se diziam companheiros, mas que no fundo queriam ser iguais a ela. Jamais confiará tão piamente nas pessoas de novo. Usa o poder das palavras como arma, age racionalmente.
Ideologia de lutar com palavras.

VII.            Seus amores
Ela é uma guerra, incompreensível, insaciável.
Ela é uma incerteza.
Entre o amor e o ódio.
Entre apegos e desapegos.
A infelicidade do amor, destruidora de sentimentos. Ela parte corações, ela domina suas paixões. Ela os devora. Todos caem aos seus pés, imploram por algum sentimento. Desejam seu o seu alento, querem o seu desapego. Jamais se rendeu aos seus sentimentos, incapaz de amar. Jamais pediu por um amor. Sem fronteiras, sem sentimentos.
Realmente tornou-se inalcançável. Prazeres concedidos, amores corrompidos. Por que pedem mais do que ela pode oferecer? Por que amar significa sofrer? Amores vêm e vão. Adora ser masoquista. O seu celibato a faz feliz. Pratica o seu masoquismo.

VIII.            Esquecimento
Abandonou a sua luta.
Desistiu da batalha.
Caiu na triste vida da rotina.
Cresceu, e se vê no mundo onde os adultos trabalham e constroem uma vida social. Cedeu à tentação de uma sociedade caída. Abandonou a sua revolução, largou o cigarro, não tem mais vício em drogas, mudou completamente, nem o seu piano, querido piano, não toca mais. Deixou-se levar pela vida que tanto lutou. Comprou casa, comprou carro, largou os jeans e as camisetas rasgadas por um terninho de uma empresa multinacional. Acomodou-se. Perdeu-se.

IX.            Ressurgindo
Abandonou tudo o que a cercava, fazendo-se só.
Perdida entre pensamentos e sentimentos.
Ressurge em meio à confusão.
Pode tirar tudo dela, mas, nada se pode esperar.
Esquecida no fundo escuro, à espera que a vitalidade ressurja.
Depois de negar a vida e os amigos, caiu na obscura rotina. Se desfez de tudo que cultuou, se recoloca em meio à sua vida. Clama com desespero o abandono da rotina. Não consegue se desacomodar. Vida simples, sem alegria, sem ânimo para viver.
Ressurgindo em meio ao caos. Quanta alegria, Sofia! Se refaz, se reabitua. Toma para si o seu lugar. Se possui, e reinventa a sua ideologia. Revoltando e revoltada, ressurge ela, em meio ao abandono e ao esquecimento. Prepara-se para reviver o que jamais ela própria viveu.
Ideologia de vida
Rebeldia, a base de tudo
Reavendo o seu fôlego de vida
Ela inicia o seu retorno

Breve triunfo virá

André Brasileiro

Paola Brocardo Guimarães
André Nascimento, 17 anos, pobre, sem pai nem mãe, criado pela vó desde que nasceu. Cresceu em uma comunidade bem comum para seu perfil, a periferia. Divide o Teto com mais dois netos de Maria, sua vó, que tem mais dois filhos. Maria é doméstica. Trabalha na região nobre da cidade de São Paulo, na casa de uma família tradicional. Dá duro para sustentar a família com seu salário e auxílios do governo. O Marido ela visita semanalmente no presídio.
Mesmo lugar que o pai de André, só que esse sem visitas. A mãe de André morreu logo após dar a luz. Foi vítima de um estupro na noite que voltava da escola. Tinha apenas 15 anos.
A vida não andava fácil para André. A escola ele nem frequentava mais, ouviu dizer nos becos que era coisa de burguês. Sem nem ao menos o fundamental completo e seu perfil peculiar e duvidoso, atraía os olhares mais hostis, o que o deixava chateado e bem violento.
Mas André também tinha um coração. E nele morava Eduarda, sua tia de apenas 10 anos. De cabelo enroladinho, olhos grandes e intimidador, e dona de uma doçura encantadora que era impossível não adorar. Gostava de tomar sol na varanda principalmente quando a chuva adentrava a sua casa nas noites mais severas. Gostava do silêncio ainda mais quando se ouvia tiros bem pertinho da janela do seu quarto. Gostavam de balet, bonecas e de piano. Assistiu alguma vez um filme no qual o protagonista poderia salvar a vida da sua família se tocasse piano como nunca. Ela tentou explicar a André a história, mas sem prender muito a atenção do sobrinho.
Queria se sentir gente. Mas precisava de dinheiro e isso ele também não tinha. 

André queria sair fazer festa, comprar roupas legais que todo mundo usava. Queria se sentir gente. Mas precisava de dinheiro e isso ele também não tinha. Assim como emprego e estudo, o que dificultou bastante. Até tentou arrumar trabalho. Mas depois de tanto ‘não’ com olhar de indiferença, decidiu que ia se virar.
Começou a roubar. André roubava mini mercados, lancherias, botecos, roubava carteira na praça e bolsas no centro. Começou a ganhar dinheiro e a usar drogas. Se foi o dinheiro todo em cocaína e maconha e os roubos já não davam conta. Começou a investir em roubos maiores, dinheiro alto. Bancos, relojoarias, lojas.

Foi numa dessas que uma loja tinha exposta na vitrine um piano. Bem como Eduarda descrevia, e ele via tão longe da realidade deles. Distraído pelo encanto e lembranças, foi morto a tiros pela polícia, bem em frente à vitrine. Olhando para o piano e pensando que aquilo poderia salvar a vida de Eduarda, porque a dele nessa guerra de classes já foi perdida.

Sob um som estranhamente familiar

Luiza da Silva Gomes dos Santos
Amélia estava sentada no sofá à beira da janela da sala quando ouviu as primeiras notas de Clair de Lune vindas de um piano. Talvez o som viesse do apartamento ao lado. Sentou-se no chão com a cabeça encostada na porta para ouvir melhor de onde aquela delicadeza surgia. O som era claro, firme e delicado ao mesmo tempo. Parecia o som de pequenas pegadas nas nuvens. Algo tão bom que talvez até Debussy sentisse inveja de tamanha doçura. Tocava e repetia. Quando se deu por conta as horas já haviam passado aos montes.
A noite chegou e Clair de Lune ainda tocava como antes. Soava pelos corredores, pela sala, por Amélia. Parecia que tocavam exclusivamente para ela. Como um concerto exclusivo em sua sala. As notas eram tão evidentes e contagiantes que tomaram conta de Amélia, pareciam grudadas a seus ouvidos. Aquele som era estranhamente familiar. Ela já havia ouvido essa música muitas outras vezes antes.
Sem pensar, abriu a porta e, no escuro do corredor, Amélia perseguiu o som até se dar conta de que as notas não saíam de nenhum apartamento ao lado ou próximo. O som a chamava, era como se as notas pedissem por ela, falassem seu nome. Quanto mais ela se distanciava de sua casa, mais baixo era o volume. Quem sabe em outro prédio? Amélia decidiu voltar. Enquanto subia as escadas se deu por conta que de a música vinha de seu apartamento. Subiu as escadas correndo, com medo.
Com violência abriu a porta de seu apartamento, a música parou de repente. 
A cada degrau que subia a música aumentava e aquele barulho que antes era doce e tranquilo aos poucos a irritava e amedrontava mais. Com violência abriu a porta de seu apartamento, a música parou de repente. A teoria de que a música partia de seu lugar se concretizou ao puxar a porta do quarto. Havia um piano parado no meio de seu parto. Fechado, parado, ninguém o tocava. Apenas a música que saía dele por horas ainda continuava ali.

Sentou-se à frente do piano e o abriu. Enquanto seus dedos percorriam sem parar pelo marfim, Amélia deu-se conta de que quem tocava a música era ela mesma. Ao mesmo tempo em que descobria sua loucura pela partitura de Clair de Lune, ela esquecia de tudo que acontecia em um misto de medo e desatino. Sua cabeça dava voltas e voltas e aos poucos sua consciência e sua vida se perdiam na tranquilidade e na loucura que a música de Debussy havia dado a ela. 

A viagem do desesperado

Alexandre Flôres Pereira
Certa vez vagando pela floresta, me perdi dos meus amigos. Sempre fazíamos nossas trilhas, em busca de aventuras e diversão, era o que nos interessava, a curiosidade nos atiçava, não havia muita coisa na época, não existia a tecnologia de hoje que pudesse nos prender em casa.
Naquele dia o céu fechou, uma tempestade parecia começar, por um descuido me perdi, procurei proteção, abrigo, saí da trilha, seguindo apenas meu instinto. Certo momento, tropeço numa pedra e caio no chão, então olho para frente e avisto uma casa abandonada.
Com a chuva que estava prestes a começar, adentrei no local, estava tudo escuro e cinzento, teias de aranha pelas paredes. Até aí nada me impressionava, era o que se esperava do local, havia um piano empoeirado, passei por ele e subi as escadas, me deparei com três portas.
As portas rangiam com o bater dos ventos que entravam pela janela aberta, nesse momento escuto uma voz estridente pronunciando: “Ié ié”, até que surge um espírito serelepe, um menino em corpo de homem que diz: “Eu sou Sergio Malllandro, e você está diante das Portas dos Desesperados”. Fiquei extasiado com o que estava acontecendo, não estava entendendo.
No instante em que abro a porta, vejo outro corredor, as paredes se mexiam, criavam imagens familiares para mim, lembranças da infância e acontecimentos que me marcaram na vida.
“Você está num caminho sem volta, uma dessas portas é o caminho para sua casa, as outras vão te levar para uma dimensão paralela”, a escada atrás de mim havia sumido, parecia que eu estava no espaço, num lugar escuro cheio de estrelas e cometas passando. “Escolha logo, qual porta você quer?” Cada porta tinha uma cor (azul, verde, vermelha). “Vou na verde”, eu falei.
No instante em que abro a porta, vejo outro corredor, as paredes se mexiam, criavam imagens familiares para mim, lembranças da infância e acontecimentos que me marcaram na vida. Aquilo tudo me deixou confuso e sem entender o que estava acontecendo, “Você pode reparar um erro do passado, gostaria disso?”, disse o espírito que saltitava de um lado para o outro.
Quem não gostaria? pensei eu. De repente acordo e estou presente na minha casa, uma semana antes do atual momento, encontro meu irmão no pátio de casa que me chama: “Ei, vamos jogar bola?” Ele chuta a bola que ganhei de aniversário em direção à rua, um carro passa por cima dela e a murcha.
De repente meu irmão muda de forma, e vira o Sergio Mallandro.
Fiquei muito brabo com o acontecido, fui em direção ao meu irmão e dei um soco no seu braço, ele chorou e saiu correndo em direção a casa. Pego minha bola, entro em de casa, ele estava sentado no sofá. Digo para ele: “Desculpa, mano, sei que não foi de propósito”. Ele me responde: “Eu também errei, sou um perna de pau mesmo”. Demos muitas risadas.
De repente meu irmão muda de forma, e vira o Sergio Mallandro. “Então, não é melhor pedir desculpas?”, nisso eu volto para o corredor, já com as escadas em seu devido lugar. Sergio Mallandro surge novamente e fala comigo: “Lembre-se, nunca afaste quem é importante de sua vida, repare seus erros e aprenda com eles. Agora pode ir embora”.

Desço das escadas e saio da casa, encontro meus amigos, nos abraçamos: “Cara, onde você estava?”. Respondi: “Me perdi na trilha, mas está tudo bem, vamos para casa”. Tudo o que aconteceu serviu de lição, seguir uma nova vida com atenção.

Cartão-postal

Fernanda Zimmermann
“Nos vemos no Teatro, querida Anna. Assinado G.”
Ela corria desenfreadamente pelas ruas escuras. A pouca luminosidade vinda dos postes da rua não ajudava em sua visão. Mas continuava a correr para encontrar algo que não sabia se estava lá. A velha casa da família ficava do outro lado da cidade, e de onde estava não sabia se chegaria a tempo, mesmo que orquestras demorassem. Os pés doíam em uma sandália prata que dificultava sua locomoção, mas o pensamento de perder a pessoa amada a fazia continuar a correr.
Aqui - “Só mais um pouco, só mais um pouco”, recitava sua mente sem parar como uma sinfonia. A noite não estava fria e mesmo que estivesse o suor em seu corpo não a deixaria sentir. No céu a lua brilhava cheia como em um filme e, se existissem, todos os lobisomens estariam se transformando agora. Um filme de terror. E não era isso que estivera vivendo nos últimos minutos? Um maldito filme de terror? Para Anna Fletcher, a moça de cabelos escuros e pele clara, que passava apressada pelas lojas fechadas da Avenida 5, era exatamente isso.
A jovem bibliotecária havia conseguido trocar de turno com sua colega e passara parte do dia organizando surpresas e se produzindo para o grande concerto de seu noivo Gregor Lenz. Os dois se conheceram por acaso em uma matéria comum entre cursos na época de faculdade na qual foram escolhidos a realizar um trabalho juntos. A partir disso, começaram a passar o tempo junto, uma grande amizade surgiu e disso veio o amor. Estavam juntos há um pouco mais que cinco anos e noivos a dois. Viviam felizes no 4º andar de um grande e belo apartamento no centro da cidade. A vida perfeita de um jovem casal, até o terror daquela noite começar.
Cheirava a estofado novo, madeira e um aglomerado de perfumes que, de certo modo, irritava seu nariz.
O Teatro Athea estava quase lotado quando chegou. Cheirava a estofado novo, madeira e um aglomerado de perfumes que, de certo modo, irritava seu nariz. Estava gelado como noites de inverno, mas Anna não ligou. Estava deslumbrante em seu vestido verde azulado que combinava perfeitamente com os olhos de Gregor. Ela o viu arrumando os últimos detalhes no palco, sorriu e sentou-se no lugar marcado com um Srta. Fletcher em letras cursivas e douradas. Um homem com cerca de 45 anos, num terno elegante como o de todos os outros em sua volta, sentava-se ao seu lado com um ar despreocupado e um tanto superior. Por algum motivo, parecia feliz em vê-la.
Quando a Orquestra LEM começou a tocar suas primeiras notas, todo o público parecia ansioso por mais. Anna estava radiante, olhando orgulhosa para seu noivo enquanto ele tocava o piano de cauda preta lindamente no palco, fazendo o público suspirar de euforia. A música entrava em seus ouvidos de uma forma maravilhosa fazendo-a fechar os olhos para desfrutar melhor aquele momento. Ela se sobressaltou quando uma voz masculina interrompeu seu devaneio. “Está gostando, Senhorita Fletcher?”.
Anna olhou em direção à voz e um pequeno brilho prateado chamou sua atenção para o homem sentado ao seu lado que lhe olhava com um sorriso sombrio. O reflexo vinha de uma pequena pistola calibre 32 que estava apontada diretamente para seu rosto. O espanto e horror empalideceu toda sua face deixando-a da cor de um papel. Não conseguia pronunciar uma única palavra de socorro. A única coisa produzindo som, além da orquestra, era seu coração pulsando mais forte e sua respiração acelerada.
O reflexo vinha de uma pequena pistola calibre 32 que estava apontada diretamente para seu rosto. 
“Sabia que lhe encontraria aqui, mas você, com toda pressa, não deve ter reparado a letra no cartão-postal deixado em sua casa”. Anna lembrou-se brevemente de ter encontrado um cartão em meio às correspondências atrasadas. Um G cursivo assinado no final, o qual pensou ser de seu amado noivo, mas agora percebia o seu terrível erro. O G referia-se a Gary, um antigo colega de faculdade que envolveu Gregor em um esquema um tanto mafioso. O noivo havia lhe contado um pouco da história, mas garantira-lhe que ela não geraria problemas. Grande engano para os dois.
Sem esperar respostas o homem com a leve calvície continuou a falar: “Olhe para cima, Anna, está vendo o homem de luvas com o terno cinza no alto desse salão? Ele irá acertar um tiro certeiro em seu noivo caso você não faça exatamente o que eu disser. No porão da velha casa da família Lenz, existe uma caixa com alguns arquivos que não podem vir à tona. Lá também encontrará um pequeno colar. Gregor me deve isso pelas atividades realizadas há alguns anos em nosso grupo, como você deve saber. Levante-se como quem vai ao banheiro, saia do teatro e vá buscar. Você tem até o final do espetáculo para trazer, nem um minuto a mais, caso contrário, você já sabe o final. Pelos meus cálculos você tem uma hora. É uma pena que perca o solo do seu noivo, senhorita”.
Horrorizada, Anna levanta e faz o que o homem lhe disse. Depois de sair do salão, ela começa uma corrida até a rua, pega o primeiro táxi que passa por ali. Alguns quilômetros depois, o congestionamento bloqueou sua passagem e o desespero começou a tomar conta de si. “Não vai dar tempo, não vai dar tempo”, gritava sua mente. Então por um impulso de sobrevivência, jogou o dinheiro ao motorista e saiu correndo, batendo os saltos pela rua.
Sem fôlego e com a boca seca, ela correu e correu e correu, passando de rua em rua com um desespero crescendo no peito. Correu até chegar à porta de madeira lascada da antiga casa de seu noivo, agora abandonada. Respirando como se o ar não fosse suficiente, ela entrou com passos largos, procurando a entrada do porão. Encontrou a caixa descrita, abriu e encarou os documentos tentando encontrar um motivo de serem tão valiosos. Deu uma lida rápida descobrindo que os documentos se referiam a golpes do passado realizados pelo grupo que agora esperava com uma arma apontada para seu noivo. Pegou a caixa com os papéis e o colar, agarrou com força e saiu da casa, conferindo a hora no relógio.
Mais uma vez, saiu desenfreada, dessa vez tirando os sapatos e os segurando nas mãos. Encontrou um táxi e, por algum motivo, as ruas estavam mais vazias. Apressou o motorista observando o ponteiro diminuir seu tempo. Faltava pouco para chegar e seu relógio marcava 15 minutos para o fim. 15 minutos era o que separava a vida de seu amado da morte; 15 minutos era o tempo que tinha para atravessar as ruas e voltar calmamente para seu assento no teatro; 15 minutos para correr.
Nada importava, precisava correr
Saltou do carro e dobrou a esquina que levava às portas do grande Teatro Athea. Ainda faltavam 10 quarteirões e ela correu enquanto as poucas pessoas na rua a olhavam desconfiadas. A barra do vestido estava suja, e a maquiagem no seu rosto já não existia mais, assim como o penteado que caía a cada passo. Nada importava, precisava correr. Avistou as escadarias do grande teatro e tentou correr mais rápido, mas suas pernas não obedeciam mais aos comandos da mente.
Já não tinha forças. As escadas pareciam sem fim e mesmo com esforço não conseguia subir mais rápido. “Droga, pra que tantos degraus?”. Viu o fim da escada e uma esperança cresceu dentro de si. Enquanto chegava ao final ouviu um estouro dentro do grande salão. Um som de tiro sendo disparado e a multidão soltando gritos em uma confusão que se formava. “Não, não não, não pode ser, NÃO!”. O impulso a levou a adentrar pelas portas do salão, olhando confusa para todos os lados. O homem que lhe destinou a tarefa apareceu misteriosamente ao seu lado, arrancando-lhe a caixa das mãos com um gentil “Obrigado, Senhorita Fletcher”.

Lágrimas começaram a se formar no rosto de Anna. Em meio à confusão, ela correu até o palco procurando pelo noivo, até que alguém a puxou pelo braço. Gregor, com um rosto assustado. Ele a abraçou e ela caiu no choro tentando explicar o que tinha acontecido. O tiro era pra ele, mas por sorte o maldito piano que causara todos os problemas da noite o salvara da morte. O maldito piano que Gregor desejou tocar por toda a sua vida havia levado o tiro por ele, abrindo um buraco em sua madeira polida. Em meio a toda a bagunça que se formou no salão, os dois se abraçaram e Gregor pensou que, talvez, não quisesse mais tocar. Anna desejava o mesmo: sem mais concertos. 

Uma noite alucinante

Nataline Tuane Nervis
Em uma noite muito fria, chovia lá fora, então resolvi me deitar, alguns minutos depois toca o telefone, era do hospital, o estado de saúde de minha mãe havia piorado. Então levantei rapidamente e fui chamar meu pai para que pudéssemos ir ver minha mãe, mas quando cheguei em seu quarto não o encontrei. Saí correndo até uma parada mais próxima, ao dobrar a esquina me deparo com meu pai caído. Então ataquei um senhor que ia passando de carro e pedi se ele poderia me ajudar levar o meu pai até o hospital, pois ele estava caído e desacordado, rapidamente ele desceu do carro e me ajudou.
Ao chegar ao Hospital meu foi atendido imediatamente, foram feitos vários exames e ele teria que ficar internado por alguns dias, aí o meu mundo desabou. Saí correndo pela porta do hospital sem saber o que fazer, pois nós éramos uma família muito pobre do interior de Porto Alegre a qual eram eu, meu pai, minha mãe e mais dois irmãos. O pai era o que trabalhava para sustentar a família, minha mãe não trabalhava, pois tinha vários problemas de saúde e isso o impedia de trabalhar.
Então dias se passaram, minha mãe estava melhor, mas se encontrava ainda internada, e meu pai já havia saído do hospital. Nossa vida continuou muito tumultuada, meu pai trabalhava de manhã até noite, no fim do dia ele tinha pouco tempo para mim e meus irmãos, pois ele tinha que ir posar com minha mãe no hospital. Passado já quase um mês minha mãe estava voltando para casa.
Saí correndo até uma parada mais próxima, ao dobrar a esquina me deparo com meu pai caído.
Nós passamos por um tempo muito difícil então achei que tudo ia voltar ao normal, mas ao longo dos meses, meu pai veio a faleceu. Onde nós morávamos era alugado, minha mãe não trabalhava e então não tínhamos dinheiro para pagar o aluguel, então fomos despejados de casa, eu, minha mãe e meus dois irmãos, um de 4 e outro de 6 anos morando na rua, a mãe não encontrava emprego, pedia esmola e todos lhe viraram a cara falando que ela era folgada e não queria trabalhar. Então minha mãe vendo os meus dois irmãos chorando em uma noite muito fria, ele pegou o único pedaço de pão que ela tinha em sua sacola, repartiu em três e deu ao meu irmão e a mim, ela não comeu nada, aquela noite foi umas das piores noites que nós já passamos.
A mãe se deitou em um canto afastado para que meus irmãos não a ouvissem chorar de desespero, pois não sabia o que fazer, foi quando um senhor de boa aparência apareceu e lhe fez uma proposta irrecusável, ele daria moradia e comida a mim e meus irmãos em troca ela trabalharia para ele, a minha mãe sabendo que tinha vários problemas de saúde, não pensou muito mesmo, pois poderia ser sua única chance de ela voltar a dar uma vida boa aos seus filhos. Anos se passaram, ela conseguiu arrumar uma casa, colocou todos filhos em uma universidade, eu e meu irmão mais novo nos formamos advogados, e o do meio se formou em medicina. Nunca me questionei como a mãe deu duro para conseguir colocar-nos em uma universidade.

Então meu irmão do meio arrumou uma namorada e resolveu se casar, e foi nesta noite que aconteceu uma tragédia, a família da noiva descobriu que a nossa mãe era prostituta, meu irmão lhe virou a cara mesmo sabendo que foi o único serviço que a mãe conseguiu para criar eu e meus dois irmãos, eu fiquei sem saber o que fazer. Então me acordei no susto no meio de uma plateia, e percebi que tudo isso não passava de um sonho, olhei para os lados e percebi que estava em um concerto de Piano.

Pequeno Jorge: o curioso

Tálisson Daniel Lange
Quando criança, na casa dos avós, reparava-o no canto, esquecido, tímido, porém imponente. Ninguém o citava. Nas últimas décadas, servindo apenas como suporte para alguns trilhos bordados por minha avó, e diversos vasos de flores de todos os tipos que se acabaram com o tempo. O objeto de canto chamava minha atenção. Sempre tive a curiosidade de saber o que aquele trambolho tão robusto produzia.
Passou-se o tempo. A casa de minha avó não podia mais ser frequentada diariamente. Eu e meus pais nos mudamos de residência, em virtude da promoção profissional de ambos. Iriamos para a capital. Na cidade vizinha, na grande metrópole, os dias passavam devagar. Estava infeliz, longe das raízes afetivas de quem tanto amava. Meu comportamento era fechado, sem relacionamentos. A vida agitada da grande cidade ofuscava-me, a timidez tomou conta de minha personalidade.
As crianças com quem me relacionava eram completamente diferentes. Brincadeiras diferentes, assuntos diferentes, aprendizagem diferente. Sentia saudade do interior, do cheiro de mato e terra molhada após as chuvas, as comidas caseiras feitas com amor pela minha avó, e as histórias de meu avô, do tempo antigo, as lendas, as caçadas e peripécias de quando ele era moço.
Eu estava em meu quarto, trancado como um pássaro na jaula, observando da janela o trânsito lento, as buzinas infernais e pessoas nervosas com o cotidiano agitado. 
Era quarta-feira. Lembro-me bem. Meus pais estavam na sala do apartamento, assistindo televisão. Chovia muito naquela tarde. Eu estava em meu quarto, trancado como um pássaro na jaula, observando da janela o trânsito lento, as buzinas infernais e pessoas nervosas com o cotidiano agitado. Percebendo minha infelicidade, aquela quarta chuvosa foi o dia mais feliz da minha vida. Chegamos à conclusão de que a vida na metrópole, por mais que vantajosa para os negócios dos meus pais, não estava trazendo felicidade. Então regressamos definitivamente para a nossa terra, nosso lugar, e retomamos nossa antiga vida junto aos meus avós e ao mundo simples que nos rodeava.
Quando de volta, sentindo novamente o cheiro de lenha queimando no fogão, e a família ao redor conversando sobre coisa de gente grande, eu ligeiramente fui até o canto da sala. Já com mais idade, tive a ousadia de aproximar-me do imponente objeto de suporte. Observei uma abertura e curiosamente levantei a tampa de madeira, trabalhada a mão. Apareceram-me teclas, algumas brancas, outras pretas em menor quantidade. Aí o susto. Vagarosamente deixei minha pequena e leve mão cair sobre o teclado. O som alto e com classe do robusto jogou-me contra a parede coberta pela cortina branca. Com o barulho, vi meu avô vir rapidamente olhar o que tinha acontecido. Eu com cara de criança acuada, sabendo que tinha feito arte, pensei: pronto, lá vem bronca.
Calmamente fui levantado pelo meu avô. Eu disse que não tinha feito nada demais, que só tinha colocado minha mão nas teclas para saber o que ele produzia. Observando em meus olhos, explicou-me calmamente que aquilo era um piano de cauda, fabricado nos anos cinquenta. Pôs-me ao seu lado no banco de madeira empoeirado, e juntos passamos horas produzindo sons encantadores. A partir desse momento minha vida mudaria.
Eles hoje frequentam festas onde as danças são estranhas, eles pulam, consomem bebidas alcoólicas e chamam isso de diversão
Com o passar dos anos, a paixão pela música e especificamente pelo piano me tornou um homem diferente. Vivi de música, alegrando vidas. A música proporcionou-me uma vida cheia de conhecimentos, prazeres e descobertas. Fiz muitos amigos e perdi vários. Viajei por muitos lugares, e o que chamou mais a minha atenção foi o público no exterior. Portugueses, espanhóis, alemães, americanos valorizavam de forma diferente dos meus conterrâneos o que eu produzia musicalmente. Nunca fui o melhor, mas me defendia bem em frente às teclas, tinha cartas na manga. Tive o privilégio de ver gênios da música nascerem e morrerem, como Jimmy Hendrix e B.B. King, e tentar aproveitar o máximo do conhecimento que eles mostraram ao mundo.

Hoje, com 83 anos, cabelos brancos, os que ainda restam, com os dedos enrijecidos pelo tempo, sinto que tenho o dever de passar minha experiência para meus netos, mas eles estão interessados em outras coisas, outros instrumentos, ruídos diferentes do que era produzido em meu tempo. Eles hoje frequentam festas onde as danças são estranhas, eles pulam, consomem bebidas alcoólicas e chamam isso de diversão. Uma destas festas inclusive levou um de meus netos para junto de meu avô. Era jovem, estudioso, um futuro promissor. Tinha apenas dezesseis anos. Ele apenas pegou carona. Acabou ali. No meu tempo não era assim. Temo que a cultura de minha época se torne novamente um suporte para flores, ou trilhos bordados.

Redescobrindo paixões

Deise Caroline Krug
Já amanhecia, o sol se espreguiçava entre as folhas das árvores e começava a dominar a escuridão da madrugada. Pessoas começavam a surgir nas ruas. Iam para o trabalho, para a escola ou para o xadrez na praça. E eu... eu permanecia ali, estática, ainda sem dormir. Já completava o terceiro dia. Mais um dia em claro, acompanhando o movimento de todos que por ali passavam. Já sabia que uma moça ruiva saía todas as manhãs para trabalhar na loja de antiguidades do outro lado da rua. Também sabia que um homem já grisalho acordava todos os dias antes do sol nascer para correr. Sabia vários detalhes de todos que passavam por aquela praça e já conhecia até a rotina de alguns.
E a minha rotina? E os meus detalhes, cadê? Nada. Devo ter batido a cabeça, adormecido ou sou esquecida mesmo. Mas afinal, quem eu sou? Passei três dias contemplando a vida de outras pessoas, sem ao menos saber o porquê de estar ali. Nenhuma memória, nenhum pensamento.
De repente, nasce em meio ao barulho de veículos, vozes e pássaros um som diferente e encantador. Segui aquele som, que me levou até uma mansão antiga, com ar de mal-assombrada. Olhei para os lados para ter certeza que não havia ninguém por perto e tentei abrir o portão que, para minha surpresa, estava aberto. Espiei por uma janela. Lá estava uma mulher tocando um piano. Um piano? Sim, um piano! Aquele som, aquele formato, tudo começou a fazer sentido.
Sentei em frente à casa e continuei ouvindo as melodias. A cada nota lembrava-me de algo diferente sobre minha vida. Lembrei que, naquela noite, bebi demais e bati com a cabeça na calçada, enquanto voltava para casa. Devo ter desmaiado e alguém me ajudou, pois acordei em um banco. Lembrei também que sou enfermeira e trabalho em um hospital da cidade. E lembrei da minha paixão: a música. Ah, a música. Me trouxe tantas alegrias, consolou tantas lágrimas e, hoje, me ajudou a lembrar minha identidade.
Espiei por uma janela. Lá estava uma mulher tocando um piano. Um piano? Sim, um piano! Aquele som, aquele formato, tudo começou a fazer sentido.
Voltei para casa. Agora, felizmente, eu sabia onde ficava e como podia chegar. Quando abri a porta, me deparei com ele, aquele piano que, além de instrumento musical, é também meu psicólogo. Passei aquela noite em claro. Não conseguia entender por que me tornei enfermeira. Em que momento eu pensei em cuidar da saúde das pessoas? Até pouco tempo não queria nem ver sangue e até hoje tenho medo de injeção. Minha motivação, minha real paixão é a música, não as seringas.
Parece que a batida na cabeça também deu uns tapas na minha vida. Fiquei confusa entre seguir a rotina do passado e apostar em uma paixão que poderia não dar certo. Passei semanas pensando. Nesse tempo, continuei com o hospital e a música em minha vida. Até pensei em dar um tempo nos dois, mas não tinha jeito. Precisava de dinheiro e de sossego. Já se passava quase um mês quando tomei minha decisão. Me demiti. Comecei a dar aulas particulares de piano, violão e canto e, à noite, cantava em alguns bares com dois amigos meus.
Cair na calçada me trouxe um corte na cabeça e um mundo novo de paixões. Tudo eram flores e todos os sons, melodias.
Não senti, em momento algum, saudade do hospital. Ao contrário, me alegrei por ter tomado a decisão de sair, mesmo sem saber que rumo tomaria a minha vida. Meus ex-colegas acompanhavam minhas apresentações nos bares e pagavam-me uma cerveja após o “expediente”. Estavam orgulhosos de mim e admiravam minha coragem. Segundo eles, era notável meu descontentamento em ver macas e pacientes todos os dias. Agora meus olhos brilhavam, meu sorriso resplandecia e minha voz tocava até os corações mais fechados.

Cair na calçada me trouxe um corte na cabeça e um mundo novo de paixões. Sim, minhas paixões se multiplicavam constantemente. Tudo eram flores e todos os sons, melodias. Dizem que o mundo dá voltas. Numa dessas voltas, ele me mostrou que eu não precisava apenas de um emprego que pagasse minhas contas, mas de uma profissão, algo que me realizasse por completo. Foi aí que comecei a viver minha vida baseada em minha grande paixão: a música.

Hotel

Bruno Gonçalves de Souza
Você é do tipo alto e bronzeado, andando pela cidade, com seu peito estufado e roupas estilosas. Flertando com as garotas, como se você fosse lindo demais. Eu fiquei tipo “oh sim, ele é bonito, mas será que sabe cantar?”.
Nos primeiros 15 minutos a beleza chama atenção, depois é preciso conquistar com as palavras. É preciso conteúdo. Você tinha. Caminhando com um sorvete na mão. Conversando sobre assuntos adultos, agindo como adolescentes. Era bom conversar por horas e sentir que haviam passados minutos.
Na livraria, você havia me dito que gostava dos clássicos infantis, pois gostava de ler sobre pessoas corajosas e um mundo inocente, diferente do que vivia. Falava de um jeito manso, com uma voz rouca. Ar de inteligência, um cavalheiro.
Nenhuma palavra dita, tudo subentendido. 
Lembro-me de você no Hotel. Falando com tanta coragem e tão docemente. Olhares fixados, respiração ofegante. Nenhuma palavra dita, tudo subentendido. Você era famoso, seu coração era uma lenda.
É engraçado como a vida nos dá algo com uma mão, e nos tira com a outra. Lá na costa leste,  onde te conheci, eles tinham um ditado, “se você não está bebendo, você não está no jogo”. Mas você tinha a música dentro de você, não tinha? Enquanto tocava piano e cantava sobre paixões não correspondidas e amores imperfeitos.
Estava ficando difícil mostrar, me sentia mais sensível e vulnerável a cada toque. Você dizia que sentia minha falta. Dizia estar apaixonado, mas não só por mim. “Como isso é possível?”, me perguntava, enquanto me mantinha afastado.
Então você se foi. Deu as costas e simplesmente foi. Meus sonhos americanos se tornaram reais, de alguma forma. Eu jurei que os perseguiria até estar morto. Minha vida havia ficado doce como canela. Como a porra de um sonho em que estava vivendo.
Ah querido, estava apaixonado. Mas não podia consertá-lo, não podia fazê-lo melhor. E não podia fazer nada sobre aquele clima estranho. Porque ele era inconsertável. Não podia entrar em seu mundo, porque ele vivia em tons frios. Seu coração era inquebrável.
Andava pelas ruas da cidade, seria por engano ou havia planejado? Me sentia tão sozinho em uma sexta à noite. Você poderia fazer eu me sentir em casa, se quisesse. Eu só não queria que me deixasse triste. Que não me fizesse chorar.

“Às vezes o amor não é o bastante, e a estrada fica difícil, não sei por quê”, você cantarolava no piano. Eu só queria que continuasse me fazendo rir. Chapados, a estrada seria longa. Só queria tentar nos divertir naquele meio tempo.

Nuvole Bianche

Larissa Batista Dorneles
Nunca fui um cara propenso ao drama. Na realidade, nem filmes desse gênero eu conseguia aguentar por mais de alguns minutos. Porém, isso foi antes do meu apocalipse particular. Diferente do drama, bebidas com alto teor alcoólico sempre prenderam minha atenção. Aquela era a minha noite, eu estava extasiado. Não ouvi quando ela me mandou parar. Não vi o carro vindo em nossa direção. Só ouvi o som da colisão, o qual sempre escuto antes de cair no sono.
Como uma lembrança fúnebre, uma ilusão necessária, deixei os móveis no mesmo lugar desde que ela foi embora. Não só os móveis. A colcha de retalhos, horrorosa na minha opinião, seguia enfeitando a cama todos os dias, cama essa que insisto em arrumar, mesmo não saindo de casa há meses. O imóvel parece que parou no tempo, esquecido, assim como eu. Nós primeiros dias, escutava o telefone tocar com frequência, não tinha vontade de atender. Agora, parece que até minha mãe esqueceu de mim. Melhor desse jeito.
Como uma lembrança fúnebre, uma ilusão necessária, deixei os móveis no mesmo lugar desde que ela foi embora
Desde o acidente, há três meses, a minha rotina era tão sem graça. Se a culpa não me matasse, com toda a certeza o tédio o faria. Passava o dia todo na cama, comia pouco. À noite, abria a janela da frente e ficava na expectativa que, assim como na estória de Poe, um corvo entrasse por ela e selasse o meu destino com o seu “nunca mais”. Claro, isso nunca aconteceu. Não de verdade.
Há semanas, uma ideia se tornava cada vez mais atraente. Em uma gaveta da cozinha, uma combinação de remédios era muito peculiar. Lembranças dos tempos de depressão. Misturada à garrafa de uísque que guardava com tanto carinho, seria um belo jeito de sair de cena. Tinha as armas e a vontade, mas a coragem parecia faltar. Em uma quinta-feira, dia 18 junho, resolvi colocar meu plano em prática.
Peguei a garrafa, os antidepressivos e uma foto dela. Segui para o meu quarto, nosso quarto, observando cada detalhe da casa até chegar lá. Sem demora, tomei todos os comprimidos de Alprazolam e Clonazepam que estavam nas caixas, seguido de um longo gole de uísque. Deveria servir. Deitei na cama. Em minutos, uma moleza dominava meu corpo, enquanto observava a foto dela. Minha noiva. E então tudo ficou escuro e quieto.
Acordei com o som suave do piano da sala, não o ouvia desde o acidente. Ela havia ganhado da avó, uma grande musicista. A melodia era inconfundível, Nuvole Bianche do italiano Ludovico Einaudi, a preferida dela. Levantei-me em um salto. Corri até sala e constatei que minha mente pregava uma das peças mais cruéis dos últimos meses. Junto ao piano estava minha noiva morta, tocando a música que tanto adorava. Seus traços pareciam tão tristes. O rosto molhado ainda ostentava alguns cortes. O cabelo estava mais curto, na altura dos ombros.
Corri até sala e constatei que minha mente pregava uma das peças mais cruéis dos últimos meses. Junto ao piano estava minha noiva morta, tocando a música que tanto adorava
Gritei seu nome. Ela não se mexeu. Era mais uma prova de que aquilo era uma ilusão. Após terminar a música, ela andou pela casa. Pegava alguns objetos e guardava em uma caixa de papelão. E eu ali sentado no sofá, acho que por horas a fio, observando minha noiva passar da sala para o quarto e demais peças da casa.
Ao terminar, ela olhou em volta, mais lágrimas molhavam seu rosto. Pegou a caixa e se dirigiu a porta, e eu a segui. Era uma tarde chuvosa e o vento soprava forte fora das paredes do meu santuário. Ela abriu a porta e fechou o casaco. Já eu não senti o ar gelado. Ela saiu e quando tentei passar pelo batente, foi como se uma parede imaginária me prendesse. Bati com todas as minhas forças contra ela, mas nada. Eu estava preso.

E foi aí que percebi. Diferente dela, eu não pertencia mais a lugar nenhum. Pelo menos a culpa havia sumido, porém a solidão continuaria por um bom tempo. Minha única opção era esperar a próxima visita dela e revisar minha afirmação sobre o drama. Ao final, nenhum de nós foi embora, mas só ela seguiria em frente.