Tálisson Daniel Lange
Quando
criança, na casa dos avós, reparava-o no canto, esquecido, tímido, porém
imponente. Ninguém o citava. Nas últimas décadas, servindo apenas como suporte
para alguns trilhos bordados por minha avó, e diversos vasos de flores de todos
os tipos que se acabaram com o tempo. O objeto de canto chamava minha atenção.
Sempre tive a curiosidade de saber o que aquele trambolho tão robusto produzia.
Passou-se
o tempo. A casa de minha avó não podia mais ser frequentada diariamente. Eu e
meus pais nos mudamos de residência, em virtude da promoção profissional de
ambos. Iriamos para a capital. Na cidade vizinha, na grande metrópole, os dias
passavam devagar. Estava infeliz, longe das raízes afetivas de quem tanto
amava. Meu comportamento era fechado, sem relacionamentos. A vida agitada da
grande cidade ofuscava-me, a timidez tomou conta de minha personalidade.
As
crianças com quem me relacionava eram completamente diferentes. Brincadeiras
diferentes, assuntos diferentes, aprendizagem diferente. Sentia saudade do
interior, do cheiro de mato e terra molhada após as chuvas, as comidas caseiras
feitas com amor pela minha avó, e as histórias de meu avô, do tempo antigo, as
lendas, as caçadas e peripécias de quando ele era moço.
Eu estava em meu quarto, trancado como um pássaro na jaula, observando da janela o trânsito lento, as buzinas infernais e pessoas nervosas com o cotidiano agitado.
Era
quarta-feira. Lembro-me bem. Meus pais estavam na sala do apartamento,
assistindo televisão. Chovia muito naquela tarde. Eu estava em meu quarto,
trancado como um pássaro na jaula, observando da janela o trânsito lento, as
buzinas infernais e pessoas nervosas com o cotidiano agitado. Percebendo minha
infelicidade, aquela quarta chuvosa foi o dia mais feliz da minha vida.
Chegamos à conclusão de que a vida na metrópole, por mais que vantajosa para os
negócios dos meus pais, não estava trazendo felicidade. Então regressamos
definitivamente para a nossa terra, nosso lugar, e retomamos nossa antiga vida
junto aos meus avós e ao mundo simples que nos rodeava.
Quando
de volta, sentindo novamente o cheiro de lenha queimando no fogão, e a família
ao redor conversando sobre coisa de gente grande, eu ligeiramente fui até o
canto da sala. Já com mais idade, tive a ousadia de aproximar-me do imponente
objeto de suporte. Observei uma abertura e curiosamente levantei a tampa de
madeira, trabalhada a mão. Apareceram-me teclas, algumas brancas, outras pretas
em menor quantidade. Aí o susto. Vagarosamente deixei minha pequena e leve mão
cair sobre o teclado. O som alto e com classe do robusto jogou-me contra a
parede coberta pela cortina branca. Com o barulho, vi meu avô vir rapidamente
olhar o que tinha acontecido. Eu com cara de criança acuada, sabendo que tinha
feito arte, pensei: pronto, lá vem bronca.
Calmamente
fui levantado pelo meu avô. Eu disse que não tinha feito nada demais, que só
tinha colocado minha mão nas teclas para saber o que ele produzia. Observando
em meus olhos, explicou-me calmamente que aquilo era um piano de cauda,
fabricado nos anos cinquenta. Pôs-me ao seu lado no banco de madeira
empoeirado, e juntos passamos horas produzindo sons encantadores. A partir
desse momento minha vida mudaria.
Eles hoje frequentam festas onde as danças são estranhas, eles pulam, consomem bebidas alcoólicas e chamam isso de diversão
Com
o passar dos anos, a paixão pela música e especificamente pelo piano me tornou
um homem diferente. Vivi de música, alegrando vidas. A música proporcionou-me
uma vida cheia de conhecimentos, prazeres e descobertas. Fiz muitos amigos e
perdi vários. Viajei por muitos lugares, e o que chamou mais a minha atenção
foi o público no exterior. Portugueses, espanhóis, alemães, americanos
valorizavam de forma diferente dos meus conterrâneos o que eu produzia
musicalmente. Nunca fui o melhor, mas me defendia bem em frente às teclas,
tinha cartas na manga. Tive o privilégio de ver gênios da música nascerem e
morrerem, como Jimmy Hendrix e B.B. King, e tentar aproveitar o máximo do
conhecimento que eles mostraram ao mundo.
Hoje,
com 83 anos, cabelos brancos, os que ainda restam, com os dedos enrijecidos
pelo tempo, sinto que tenho o dever de passar minha experiência para meus netos,
mas eles estão interessados em outras coisas, outros instrumentos, ruídos
diferentes do que era produzido em meu tempo. Eles hoje frequentam festas onde
as danças são estranhas, eles pulam, consomem bebidas alcoólicas e chamam isso
de diversão. Uma destas festas inclusive levou um de meus netos para junto de
meu avô. Era jovem, estudioso, um futuro promissor. Tinha apenas dezesseis
anos. Ele apenas pegou carona. Acabou ali. No meu tempo não era assim. Temo que
a cultura de minha época se torne novamente um suporte para flores, ou trilhos
bordados.
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