quarta-feira, 22 de julho de 2015

Pequeno Jorge: o curioso

Tálisson Daniel Lange
Quando criança, na casa dos avós, reparava-o no canto, esquecido, tímido, porém imponente. Ninguém o citava. Nas últimas décadas, servindo apenas como suporte para alguns trilhos bordados por minha avó, e diversos vasos de flores de todos os tipos que se acabaram com o tempo. O objeto de canto chamava minha atenção. Sempre tive a curiosidade de saber o que aquele trambolho tão robusto produzia.
Passou-se o tempo. A casa de minha avó não podia mais ser frequentada diariamente. Eu e meus pais nos mudamos de residência, em virtude da promoção profissional de ambos. Iriamos para a capital. Na cidade vizinha, na grande metrópole, os dias passavam devagar. Estava infeliz, longe das raízes afetivas de quem tanto amava. Meu comportamento era fechado, sem relacionamentos. A vida agitada da grande cidade ofuscava-me, a timidez tomou conta de minha personalidade.
As crianças com quem me relacionava eram completamente diferentes. Brincadeiras diferentes, assuntos diferentes, aprendizagem diferente. Sentia saudade do interior, do cheiro de mato e terra molhada após as chuvas, as comidas caseiras feitas com amor pela minha avó, e as histórias de meu avô, do tempo antigo, as lendas, as caçadas e peripécias de quando ele era moço.
Eu estava em meu quarto, trancado como um pássaro na jaula, observando da janela o trânsito lento, as buzinas infernais e pessoas nervosas com o cotidiano agitado. 
Era quarta-feira. Lembro-me bem. Meus pais estavam na sala do apartamento, assistindo televisão. Chovia muito naquela tarde. Eu estava em meu quarto, trancado como um pássaro na jaula, observando da janela o trânsito lento, as buzinas infernais e pessoas nervosas com o cotidiano agitado. Percebendo minha infelicidade, aquela quarta chuvosa foi o dia mais feliz da minha vida. Chegamos à conclusão de que a vida na metrópole, por mais que vantajosa para os negócios dos meus pais, não estava trazendo felicidade. Então regressamos definitivamente para a nossa terra, nosso lugar, e retomamos nossa antiga vida junto aos meus avós e ao mundo simples que nos rodeava.
Quando de volta, sentindo novamente o cheiro de lenha queimando no fogão, e a família ao redor conversando sobre coisa de gente grande, eu ligeiramente fui até o canto da sala. Já com mais idade, tive a ousadia de aproximar-me do imponente objeto de suporte. Observei uma abertura e curiosamente levantei a tampa de madeira, trabalhada a mão. Apareceram-me teclas, algumas brancas, outras pretas em menor quantidade. Aí o susto. Vagarosamente deixei minha pequena e leve mão cair sobre o teclado. O som alto e com classe do robusto jogou-me contra a parede coberta pela cortina branca. Com o barulho, vi meu avô vir rapidamente olhar o que tinha acontecido. Eu com cara de criança acuada, sabendo que tinha feito arte, pensei: pronto, lá vem bronca.
Calmamente fui levantado pelo meu avô. Eu disse que não tinha feito nada demais, que só tinha colocado minha mão nas teclas para saber o que ele produzia. Observando em meus olhos, explicou-me calmamente que aquilo era um piano de cauda, fabricado nos anos cinquenta. Pôs-me ao seu lado no banco de madeira empoeirado, e juntos passamos horas produzindo sons encantadores. A partir desse momento minha vida mudaria.
Eles hoje frequentam festas onde as danças são estranhas, eles pulam, consomem bebidas alcoólicas e chamam isso de diversão
Com o passar dos anos, a paixão pela música e especificamente pelo piano me tornou um homem diferente. Vivi de música, alegrando vidas. A música proporcionou-me uma vida cheia de conhecimentos, prazeres e descobertas. Fiz muitos amigos e perdi vários. Viajei por muitos lugares, e o que chamou mais a minha atenção foi o público no exterior. Portugueses, espanhóis, alemães, americanos valorizavam de forma diferente dos meus conterrâneos o que eu produzia musicalmente. Nunca fui o melhor, mas me defendia bem em frente às teclas, tinha cartas na manga. Tive o privilégio de ver gênios da música nascerem e morrerem, como Jimmy Hendrix e B.B. King, e tentar aproveitar o máximo do conhecimento que eles mostraram ao mundo.

Hoje, com 83 anos, cabelos brancos, os que ainda restam, com os dedos enrijecidos pelo tempo, sinto que tenho o dever de passar minha experiência para meus netos, mas eles estão interessados em outras coisas, outros instrumentos, ruídos diferentes do que era produzido em meu tempo. Eles hoje frequentam festas onde as danças são estranhas, eles pulam, consomem bebidas alcoólicas e chamam isso de diversão. Uma destas festas inclusive levou um de meus netos para junto de meu avô. Era jovem, estudioso, um futuro promissor. Tinha apenas dezesseis anos. Ele apenas pegou carona. Acabou ali. No meu tempo não era assim. Temo que a cultura de minha época se torne novamente um suporte para flores, ou trilhos bordados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário